Não nutro qualquer simpatia pelo jornal “24 Horas”, nem qualquer tipo de apreço pelo tipo de jornalismo que por ali se pratica.
O “24 Horas” como tablóide que é, faz do sensacionalismo a sua essência. Provavelmente, quem o dirige e edita, estaria longe de imaginar quão sensacionalista seria a reacção do Procurador-Geral Souto Moura à denúncia sistemática ás abusivas escutas telefónicas efectuadas no âmbito do “Caso Casa Pia”, levada a cabo nas suas páginas,
Não são, de forma alguma aceitáveis as atitudes (não só esta, as outras – quase todas – também) do Procurador Souto Moura e da sua equipa.
Não o são para mim, como também para outras pessoas, algumas delas figuras públicas como Miguel Sousa Tavares, José Manuel Fernandes e alguns (poucos) mais que vieram a público manifestá-lo. Se entre os “poucos mais” incluirmos os lesados e visados pelas escutas, são realmente muito poucos… os tais “mais”.
É de ir às lágrimas a forma como a invasão da redacção do
“24 Horas” saiu relatada no “El País” sob a forma de notícia e que transcrevo do “Courrier Internacional”: “Quatro agentes e dois promotores irromperam pela redacção gritando: Tirem as mãos do teclado, não toquem em nada e saiam! Duas horas depois saíram com o computador do jornalista…”.
O cenário, é a redacção de um jornal, num país definido como um Estado Democrático, cuja Constituição tem em si consagrados os direitos, liberdades e garantias dos seus cidadãos. Mas o cenário onde tudo isto se desenrolou, poderia com pequenas nuances frásicas e de décor, ser um qualquer
Saloon do velho oeste, transfigurado em
Western Spaghetti (honra seja feita à memória de Sérgio Leone) com banda sonora a condizer do Ennio Morricone. A frase, essa, não seria muito diferente: “Mãos ao ar – que ninguém se mexa!”…
O que aqui está em causa, não tem nada que ver nem com justiça, nem com a sua aplicação. Tem que ver – tudo – com abuso de poder e prepotência fora de qualquer controle, o que permite proceder a todos os desmandos (e mais alguns ainda) em total impunidade.
O Procurador-Geral da República, é uma das principais figuras da hierarquia do estado. Acima dele, na tal cadeia hierárquica, está o Presidente da República, aquele mesmo que foi alvo de escutas e lhe exigiu rápidos esclarecimentos acerca disso mesmo. O “isso mesmo” é a listagem de chamadas existentes no famoso
Envelope 9, conter um elevado número de nomes de políticos e titulares de cargos públicos - entre eles o presidente! – sem que tal seja devidamente explicado.
O sr. Souto Moura, não só não deu cumprimento à exigência do Primeiro Magistrado da Nação, como no mais pueril e mesquinho sentimento de vingança, decidiu invadir a redacção do jornal e confiscar os computadores de quem denunciou o atropelo!
Atitudes do tipo “quero, posso e mando”, nunca constituíram exercício de autoridade. Para isso existe outra designação: Autoritarismo.
O que é que sobra de tudo isto? O sr. Presidente Jorge Sampaio termina o mandato e vai para casa de consciência tranquila “pôr o cinema em dia” (como o próprio declarou) e o sr. procurador mantém-se no cargo para o que der e vier. Mas, sobra também o sentimento de que quem se opuser ou denunciar desmandos, atropelos e ilegalidades vai sofrer as consequências!
O cercear das liberdades e dos direitos e a justa indignação quanto a isso. São não só questões morais e de princípios, são também questões culturais.
Se houve mobilizações e manifestações de repúdio aquando da extinção do Ballet Gulbenkian ou da substituição da direcção do Teatro D. Maria – que eram (e são) questões importantes, esta não o é menos.
Cidadania, é também cultura. Não é um exercício que se esgote com a colocação do voto na urna com data marcada, lavando com esse acto a consciência cívica. É também rejeitar actuações como a relatada e dizê-lo publicamente. É recusar o silêncio cúmplice – a começar pelos deputados eleitos da nação, todos eles!!! – que passam ao lado deste caso sem que nenhum levante a voz, quando tem legitimidade acrescida para o fazer e audiência assegurada para se fazer ouvir.
Quer-se a dignificação dos cargos públicos? Não se quer acentuar o divórcio entre cidadãos e políticos? Apetece dizer: Bem-haja Saramago e o “Ensaio sobre a lucidez”!
Agora foi o “24 Horas”. E a seguir?
É mais do que provável que futuramente qualquer órgão de informação que ponha a descoberto situações de clara ilegalidade ou violação não justificada de privacidade estará sujeito a isto… Será então que todo este aparato deve ser interpretado também como elemento dissuasor. Um desincentivo a futuras denúncias junto da opinião pública?
Opinião pública essa, que felizmente existe e é livre de se expressar, mas que infelizmente não se indigna (que é quase o mesmo que não existir).
Para concluir a descrição desta farsa, deixo dito que eu (e em princípio) a meia dúzia de leitores regulares do blog, nos indignamos em uníssono e o manifestamos de forma ruidosamente inaudível a partir desta página. Deixo dito também que democraticamente exijo – em nome do direito de igualdade de oportunidades – que este computador me seja confiscado, porque conforme prova fotográfica que junto, também eu tive acesso ao “
Envelope 9”.