Tudo isto foi provocado pelo último filme que vi, “A Ciência dos Sonhos” (e que recomendo vivamente!) e que me fez rebuscar no sótão das memórias e, inevitavelmente, estas vieram atreladas umas às outras, tal como as cerejas que por sua vez são como as conversas – ou vice-versa – e estas por sua vez…
Não tenho a certeza se o “sonho comanda a vida” pese embora o enraizamento desta ideia. Devo acrescentar aliás que não é só esta certeza que não tenho, pois não tenho muitas outras… melhor seria mesmo dizer, que não tenho certezas nenhumas… no entanto, é inquestionável que os sonhos mexem connosco.
Faz tempo que vi, no Teatro da Cornucópia a peça “A Vida é Sonho” do dramaturgo espanhol dos anos de 1600, Calderón de la Barca - também ele grande sonhador - em que, de entre as coisas prodigiosas aí ditas, destaco esta:
“É verdade… diz-se por aqui que a vida é sonho e que vale a pena vivê-la mesmo sendo sonho. Por ser sonho não deixa de ser vida; por ser falso não deixa de ser verdadeiro”
Efectivamente…
Um dos grandes sonhadores da nossa história, permanece envolto em espessa penumbra. As causas? Porque foi, à época, particularmente incomodativo e porque na generalidade, os sonhadores produzem uma sensação de desconfiança nos poderes instituídos – sejam eles quais forem – principalmente se não prosseguirem os desígnios destes!
Mas como ia dizendo, veio-me à ideia uma dessas extraordinárias criaturas de que se ouve falar vagamente e quase sempre em termos mais ou menos jocosos: Bartolomeu de Gusmão.
Conhecido como “padre voador” em metade da Europa da época, por ter descoberto um “instrumento de andar pelo ar”. O seu percurso agitado começou no seminário e acabou nos cárceres da inquisição.
Bartolomeu Lourenço de Gusmão, nasceu em 1685 na Vila de Santos, na colónia portuguesa do Brasil. A maioria dos 12 filhos da prole Gusmão foi orientada pelos progenitores a seguir a vida eclesiástica. Bartolomeu não foi excepção, ingressando no seminário de Belém da Cachoeira onde precocemente iniciaria a sua profícua e multifacetada carreira de inventor.
Não me alongando muito em descrições detalhadas que seguramente se tornariam enfadonhas, retenho de tudo isto o incómodo que todos os visionários e sonhadores têm provocado ao longo do tempo, ou dos tempos, todos os tempos…
Na verdade, seja lá a verdade aquilo que for, hoje a “Inquisição” como instituição, não existe. No entanto, quantas inquisições sob outras designações subsistem por aí, coagindo e cerceando?
Em 1708, já sacerdote, Bartolomeu vem (mais uma vez) a Portugal. Aqui chegado, requer a patente para um “instrumento de andar pelo ar”. Sabido isto, pode imaginar-se o reboliço que tal facto ou a suposta existência de tão prodigioso instrumento terá à época causado.
Mas não só. Rapidamente a notícia se estendeu a outros reinos europeus, circulando imagens fantasiosas do inaudito invento, as quais tiveram origem no próprio Bartolomeu.
Estas ilustrações foram executadas por um aluno de matemática de Bartolomeu – D. Joaquim Francisco de Sá Almeida – com a sua conivência e deveram-se sobretudo à necessidade de preservar o invento da curiosidade, natural diga-se, que tal objecto necessariamente causaria, mas também da espionagem que era na época comum, acerca de mapas, artes de marear ou até de tácticas e instrumentos militares.
Após vários ensaios e tentativas, a última delas, executada ao ar livre, foi coroada de sucesso. A dita “Passarola”, seria afinal um balão de ar quente, ao que se pensa, em tudo semelhante ao invento – posterior – dos irmãos Montgolfier, pelo menos no que respeita aos princípios matemáticos e leis da física aí aplicados.
Nada disto está comprovado porque o padre Gusmão nunca conseguiu reunir o entusiasmo da corte em abono do seu invento, o que obstou a que se fizessem ensaios com modelos em tamanho natural e capazes de transportar pessoas. Todas as experiências levadas a cabo, foram-no utilizando modelos reduzidos.
Bartolomeu de Gusmão acabaria os seus dias em fuga, denunciado que foi à Inquisição como apóstata… algo que, na altura deveria ser mais gravoso do que hoje em dia ser declarado arguido no caso "Apito Dourado"... Se seria só esse o seu “crime” não sei, mas denuncias deste tipo eram (ainda são sob outras vestes) recorrentes relativamente a quem vê mais longe ou tem razão antes do tempo.
Em jeito de conclusão, aqui fica uma estrofe de Sérgio Godinho: “Farto de voar pouso as palavras no chão…”