"Faço-lhe notar que um ser humano que não sonha é como um corpo que não transpira: armazena uma porção de toxinas"
Truman Capote

10.24.2008

10.14.2008

A Crise



Não se fala noutra coisa…
Anda nas primeiras páginas dos jornais, está presente em todos os noticiários, anda na boca de toda a gente.

A crise instalou-se e veio para ficar.

Contraditoriamente, através das opiniões emitidas por quem nos governa, as quais oscilam entre o não se passa nada e o passa-se muito pouco, ficamos cientes de viver no melhor dos mundos e também que aquilo que de mal vai acontecendo, é lá longe, fora das nossas fronteiras, como se o que se passa lá fora, num mundo em que a globalização inexoravelmente tudo difunde e amplifica, não nos afectasse.
Para lá da constatação desta gritante irresponsabilidade dos nossos mais responsáveis, aquilo que talvez mais interesse reter é que o mundo tal como o conhecemos até aqui, acabou.
É claro que os sinais de mudança ainda não se fazem sentir plenamente. As repercussões, essas continuarão a vir em sucessivas ondas de choque, acentuando clivagens e fracturas, até que tudo se ajuste sob novos paradigmas.
Crises mundiais sempre as houve. Fracturas e clivagens também. No decurso da já longa história da humanidade sempre se registaram factos e eventos de que resultaram novas ordens sociais ou profundos reajustamentos dentro das ordens existentes. A grande diferença aqui é que o fenómeno a que se dá o nome de globalização, não deixa país ou região à margem de qualquer crise ou conflito…
Assim mesmo, como o famoso “efeito borboleta” cujo postulado diz que o bater de asas de uma borboleta no Japão pode provocar um tornado do outro lado do mundo[i].

Quem conhece um pouco de História sabe que a economia dos países, das regiões, dos blocos, sempre teve altos e baixos, momentos de franca e alegre expansão, assim como amargos e trágicos momentos de recessão. As grandes convulsões sociais sempre foram a causa de incontornáveis efeitos.
Como exemplo maior de nefasta ocorrência neste domínio, basta referir a Grande Depressão dos anos 29/30 do século passado nos EUA, de onde emergiu uma sociedade diferente da que havia até então.
Mas outros importantes acontecimentos se deram, antes e depois da Grande Depressão, os quais alteraram drasticamente os modos de vida. É o caso da Revolução Francesa (1789), do advento da Revolução Industrial na segunda metade do século XVIII e das duas Guerras Mundiais. Igualmente importantes foram também o chamado Choque Petrolífero nos anos 70 do século XX ou da queda do Muro de Berlim e consequente desagregação do Bloco de Leste em 1989.
Estes foram alguns dos grandes acontecimentos que alteraram profundamente o tecido social e também a ordem mundial vigente na época, com consequências que ainda hoje se fazem sentir.

A queda do Muro de Berlim em particular, oficializou a inviabilidade do socialismo fazendo com que a economia deixasse de ter dois grandes modelos em oposição (no modelo mais ortodoxo subsiste apenas a Coreia do Norte com as consequências que se conhecem) reafirmando a supremacia do modelo capitalista da sociedade de consumo em que vivemos. O modelo económico-social em presença, assente na livre concorrência, na não intervenção do estado e na auto-regulação do mercado tinha-se oposto até então ao modelo intervencionista e de economia planificada em vigor na Europa de Leste. Com o desmembramento do império soviético e o colapso dos países satélites, terminava também a “Guerra Fria” e com ela toda uma época.
Este modelo de sociedade, ao deixar de ter concorrente, passa a imperar como modelo único, como modelo triunfante. Não por acaso, a dimensão do acontecido levou pensadores como Francis Fukuyama[ii] a anunciar o Fim da História – no sentido em que se havia desenrolado até então - e a inauguração de uma nova era.

Foi assim durante alguns anos… mas a surpresa das surpresas estava para vir… no século XXI.
O impensável, o inominável aconteceu. O governo americano resolveu intervir na economia, decidiu impor regulação onde antes havia total liberdade e impunidade, resolveu estender a mão às depauperadas instituições de investimento de risco, cujos cálculos saíram furados em toda a linha e arriscavam produzir efeito dominó ao resto do sacrossanto mercado de capitais.
Mas não foi uma intervenção isenta de críticas e contestações várias, sendo a frase lapidar de um senador, um republicano do Kentucky, aquela que provavelmente melhor sintetiza o sentir de certos sectores mais conservadores: “Isto é socialismo financeiro, isto não é americano”
Esta decisão da administração americana, parecendo um facto de somenos importância e um gesto expectável perante o avolumar da crise, é não só o pôr em causa os fundamentos do capitalismo na sua vertente liberal e neo-liberal, como pôr em causa também – e isto não é de todo um dado menor - o modelo de funcionamento da maior economia do planeta.
Com a crise instalada (e para durar), são mais algumas inabaláveis certezas que se acabam e com elas uma certa maneira de ver o mundo. Se com o terminar da “Guerra Fria” e o desmantelar da “Cortina de Ferro” os EUA surgiam como a única super-potência à escala planetária reafirmando o seu modelo económico de sociedade – o liberalismo segundo Milton Freedman – o qual seria, doravante o modelo a seguir. Hoje os EUA são uma grande potência sem dúvida, mas uma potência falida, desrespeitada e incapaz de sair condignamente dos buracos onde lentamente se vai afundando, o menor dos quais não será o Iraque.

Estará o sistema de mercado livre ameaçado?

Não se sabe nem pode saber-se. Aquilo que se sabe é que a receita do costume em casos que tais começou a ser aplicada: Socializar os prejuízos e privatizar os lucros!




[i] Claro que esta é uma definição simplista de uma teoria complexa (Edward Lorenz) mas que tem tanto de metafórico como de ilustrativo

[ii] Fukuyama, Francis “O Fim da História e o Último Homem” Lisboa: Gradiva, 1999, 2ª ed.