"Faço-lhe notar que um ser humano que não sonha é como um corpo que não transpira: armazena uma porção de toxinas"
Truman Capote

1.21.2012

fazia todo o sentido que te procurasse se era a ti que eu queria...


Digo:

de olhos fechados, era capaz de desenhar o mapa desse
corpo que as minhas mãos já não modelam,
a partir de percursos definidos a dois desejos que
afinal eram um só, em comunhão de urgências e aflições que
o sabermos do tempo efémero, convertia em desespero


Prossigo:

todos os sentidos são demais e não chegam e de olhos fechados sigo o
mapa que fiz de ti, relembrando cada curva, cada prega, cada sinal e
isso de nada me serve, agora que estás distante e
eu estou tão longe como se está, quando a distância está em nós


Retrocedo:

os sonhos que desbaratei, encontrei-os
espalhados pelo chão reflectidos
nas lágrimas que verti, sobre
telas que não pintei e papeis onde não escrevi as
cartas que te dediquei


Hesito:

também por isso fazia todo o sentido que te procurasse se era a ti que eu queria
apesar de nem sequer me encontrar, perdido que estou nestes lugares vazios onde
o turbilhão dos sentimentos que me habitam, fazem fronteira entre
aquilo que sou e o que queria ser


Recordo:

e numa tarde olhaste-me profundamente e disseste:
‒ “Tens um olhar tão triste”
Pensei: triste o olhar e eu com ele, por nos saber tão efémeros como
dizem que são as paixões cujo fim tentámos adiar, condenados que estávamos à
gloriosa e sofrida separação dos amantes, que a história sempre enaltece


Lamento:

o meu olhar permanece o mesmo ainda que
tu agora não dês conta, e os vestígios do que fomos se
encontrem dispersos pelos canteiros da memória que
é o único lugar aonde agora vamos


Reflicto:

o orgulho tem destas coisas que o preconceito acentua, fazendo
de mim uma ilha à deriva por entre frases inacabadas que o destino ignora; e
em tudo isso me revejo, confrontado com um tempo sem ti, que
se arrasta como pena a cumprir por entre as marcas que deixaste, nos
desenhos rasurados que não consigo terminar

1.01.2012

Inquietação


Não é arte pública nem arte de rua, muito embora se inscreva na paisagem urbana. Não tem autor nem existe intenção. Contudo, a sua constante transmutação e imparável propagação operam, sem destino certo ou discernível propósito uma persistente transformação do nosso panorama visual. Tudo isto sem destinatário e numa aleatoriedade evidente…

Marcam presença assídua, por vezes inesperada. Geralmente ostensivos, raramente discretos, vão povoando as paredes da cidade, revestindo muros e edifícios como uma segunda pele que camada a camada se vai regenerando e adaptando aos humores das estações do ano ou ao livre-arbítrio dos passantes… são textos fragmentados, ideias retalhadas que contribuem para o prazer da descoberta ou até da invenção, esta sim, pura especulação… porque afinal, especular é aquilo que se faz quando não se sabe, coisa que aceitamos como natural… congratulamo-nos até com isso e de descodificação em descodificação se tenta decifrar a mensagem e se conferir um significado à imagem fortuita que se gerou… a partir de manchas informes, por vezes vagos desenhos que vão compondo colagens, também “rasgagens”, onde se descortinam vagas narrativas, anúncios, propaganda.

Negações e afirmações cirandam em rodopio numa vertigem aqui e ali truncada por uma ou outra contingência…

Entre proibições, desistências, interdições e rejeições, ditou-se o fim adivinhado da tempestuosa obra, de todo impossível, portadora de uma intensidade imponderável, de uma materialidade intangível, de uma incerteza insuportável…

A paisagem ficou mais tranquila, mais ordenada, mais previsível e mais regulada. Mas também mais empobrecida. Nunca a certeza conferiu riqueza ao que quer que fosse… muito menos a obras de fachada.

Paulatinamente, foi retomada a placidez que ao lugar havia sido roubada.