"Faço-lhe notar que um ser humano que não sonha é como um corpo que não transpira: armazena uma porção de toxinas"
Truman Capote

4.25.2006

Júlio Pomar


É de pequenos prazeres que se trata…

Acerca deste pequeno livro de poesia, não sei nada. Ou quase nada, para ser mais preciso. O pouco que sei, digo-o em poucas palavras porque pouco mais é do que aquilo que se pode saber pela capa. Reconheço, porém, que não me dei a investigações mais aturadas.

Será talvez uma edição de autor, dado não haver qualquer menção editorial. O único dado extra é “Lisboa 1950” e é tudo.

A poesia impressa, não resiste ao tempo. Resta-lhe, é a minha opinião, opinião de um não literato – o lugar documental no âmbito da resistência e da urgência da sua mensagem de revolta contra a ditadura de cariz fascizante que na época, pela força se impunha e que havia de durar até 25 de Abril de 1974.

(É bom lembrar hoje esse aniversário!)

Mas não é só isso que eu não sei, nem é apenas isto que eu sei.

Ignoro também se o belo desenho que surge na capa, foi feito propositadamente para ela ou se já existia e foi adaptado. Assim como ignoro a relação entre Pomar e o poeta. Se a cumplicidade entre eles era maior ou da exacta medida da militância de ambos.

Seja como for, é um pequeno (grande) prazer contemplar esta capa. Isso, eu sei. Apreciar a sua simplicidade despojada, como o seu afirmativo “silêncio” perante as palavras que o livro transporta. Marca presença apenas, o que não é pouco.

Mas vem tudo isto a propósito de pequenos prazeres… daqueles em que o João é mestre, ao proporcionar-me descobertas destas… É mais do que provável ter encontrado este pequeno tesouro num recôndito recanto de algum alfarrabista…

4.19.2006

Asfixiante Cultura



Veio agora parar-me às mãos o livro “Asfixiante Cultura” do artista plástico Jean Dubuffet (1901-1985).
Originalmente editado em França em 1986, foi em 2005 objecto de nova edição em Portugal.

Jean Dubuffet surge “arrumado” nalguns compêndios de História de Arte, na prateleira da Arte Informal. Se por um lado esta corrente artística tende a pôr de parte qualquer tipo de figuração, dando ênfase à matéria pictórica, à cor e à textura, verifica-se que em Dubuffet, tal não acontece por inteiro. Não pondo de lado a figuração, este utiliza formas de representação, incorporação de matérias, cores e texturas, que com essa corrente se identificam.

As suas figurações e representações provêm de outros universos. São representações (a maioria das vezes) figurativas que se assemelham por exemplo, aos desenhos de crianças ou doentes mentais, deflagrando como manifestações de puro instinto, de onde qualquer racionalidade se encontra arredada.

Era precisamente assim que se manifestava a “Arte Bruta”, conforme propunha Dubuffet na década de 1940. Uma arte feita à margem da cultura e contra a cultura.

Tive ocasião em 2000 de visitar duas exposições de Jean Dubuffet.
Refiro-me concretamente à exposição “Jean Dubuffet” da Culturgest (onde os bilhetes ainda eram personalizados) e também às “67 obras sobre papel” que na mesma ocasião foram mostradas na Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva em complemento da anterior.

Nessa exposição da F.A.S.V.S. foi dado a conhecer um texto da autoria de Daniel Cordier, do qual aqui fica um excerto:

“A obra de Dubuffet é uma luta contra o olhar elaborado que, no espírito, traduz a eficácia, isto é, o mundo da mão. Para apreender a riqueza lírica do universo, o artista conserva a liberdade puramente muscular do olho sem a intervenção da consciência. Aliás, Dubuffet suspeita da consciência. Pensa que esta altera tudo o que toca e que, sobretudo, se opõe ao conhecimento das coisas em vez de o estimular. O artista persiste em encontrar acessos e vias para os quais a consciência pouco contribua. Nos seus trabalhos, o olhar reconquista a sua inocência e os seus deslumbramentos, e estes, por sua vez, extraem do universo das coisas o inesperado e o incomparável. Esta recusa das categorias ópticas tradicionais devolve à sua visão uma braveza saudável, selvagem.”

Este pequeno fragmento de texto, espelha não só a obra, mas também a forma como o artista a encara, o que transparece sobejamente no livro “Asfixiante Cultura” agora (re)publicado:

“Conferir à produção de arte um carácter socialmente meritório, fazer dela uma função social honrada, falsificam gravemente o seu sentido, porque a produção de arte é uma função propriamente e fortemente individual, e por conseguinte em completo antagonismo a toda a função social. Só pode ser uma função anti-social, ou pelo menos, associal.”

“Asfixiante Cultura” merece uma leitura atenta e isenta de preconceitos. Sobretudo uma leitura que consiga penetrar para além das espessas muralhas de ironia assentes com a argamassa da provocação, que circundam todas as ideias essenciais do texto.

Se assim não for, o sentido último deste perder-se-á na medida em que o leitor desatento acabará por se sentir atingido pelos contundentes golpes do autor, cujas palavras têm gumes acerados, apontados em todas as direcções, contra tudo e contra todos, no que à cultura e intelectualidade diz respeito, nomeadamente a cristalização de conceitos, o ordenamento dos ímpetos e o atenuar de propósitos.

Mas sempre assim foi. Aquilo que é fracturante hoje, iniciará novas correntes e acabará a fazer escola amanhã.

“A posição de subversão cessa, evidentemente quando esta se generaliza para finalmente se transformar em norma. Inverte-se nesse momento de subversiva em estatutária. Mas a sua virtude enfraquece já antes disso, progressivamente e á medida que aumenta o número daqueles que dela partilham. Aumenta pelo contrário, à medida que esse número se minimiza”.

Jean Dubuffet tinha disto uma consciência plena, mas ironicamente, nem ele próprio saiu ileso…


4.03.2006

Rothko

Chegar a Rothko através de um outro…


De facto, assim foi. Não fora eu um apaixonado pela obra de Mark Rothko, provavelmente este (outro) Rothko passar-me-ia ao lado.

Tudo começou num disco: Distant Sound of Summer escutado em dia de implacável invernia. Assinavam esse disco Susumo Yokota – considerado actualmente como um dos mestres da música ambiental – e… Rothko.

Esta dupla já tinha registado antes uma outra colaboração, Waters Edge no formato EP, também ela bastante interessante. Independentemente do apreço que tenha (e tenho!) pela obra do japonês (para além de músico, artista plástico), o que realmente motiva este escrito é Rothko – o projecto musical - e desse, eu sabia… nada.

Havia pois que investigar.

Esta “coisa” da investigação, leva-nos sempre muito para além do objectivo inicial que nos propusemos… Neste caso, ainda bem, porque me deparei com uma obra singular e a todos os títulos notável: Blues: The Dark Paintings of Mark Rothko da autoria de Guitar Roberts – pseudónimo utilizado por Loren Mazzacane Connors.

Não tendo a pretensão nem a veleidade de fazer um levantamento exaustivo das obras musicais que se compuseram inspiradas ou influenciadas na/pela pintura de Mark Rothko e deixando de lado a música erudita, penso que este último disco seja referência obrigatória.
E tão mais obrigatória, quanto as afinidades são imediatamente detectáveis. Toda a carga dramática que a fase derradeira e instável da vida e obra de Rothko (o pintor) está contida nestes sons que a exacerbam e projectam numa emotividade de serena exaustão causada pelas atribuladas e trágicas vivências que até aí o conduziram.

Mark Rothkovich nasceu em Dezembro de 1903 na Rússia. Aquele que viria a ser considerado um dos maiores pintores americanos de sempre, só chegou ao território americano (Portland) com dez anos. Viria a ser em Nova Iorque que o jovem Rothkovich se converteria no Rothko que hoje se conhece.

As vicissitudes porque passou desde o anonimato à consagração, não são de todo o objecto deste texto, contudo, faz sentido referenciar a corrente artística que conjuntamente com outros protagonizou: O Expressionismo Abstracto ou Escola de Nova Iorque.

Esta corrente artística, era mais um processo do que um estilo. O objectivo daqueles que a integravam era o de expressar sentimentos através do acto da pintura, para além do produto final em que essa pintura resultasse. Daí que fosse uma corrente artística sem unanimidade visual, na qual conviviam para além de Rothko, nomes como Jackson Pollock, Willem de Kooning ou Barnett Newman.

Enquanto por exemplo a pintura de Kooning ou Pollock é uma pintura de acção (Action Painting), onde o movimento, o gesto, são determinantes, Newman e Rothko, pelo contrário não são pintores de acção. A força emocional que atribuem à cor é preponderante ao ponte de, a ela se referirem como uma “pintura de campo de cor”.

Numa última tentativa de definição, cito as palavras de William Seitz, para quem os artistas que integravam o movimento designado por Expressionismo Abstracto “valorizavam a expressão mais do que a perfeição, a vitalidade mais do que o acabamento, a flutuação mais do que o repouso, o desconhecido mais do que o conhecido, o velado mais do que o claro, o individual mais do que o social e o interior mais do que o exterior”.

Mark Rothko pôs termo à vida no ano de 1970, a 25 de Fevereiro. Para a história fica a delicadeza, mas também a emoção da sua pintura de “campos de cor”.
Creio ser precisamente nestes campos de cor, rectangularmente vagos, cujas margens suaves e nebulosas não só não estabelecem fronteiras, como deixam tudo em aberto, que os músicos se deixaram “contaminar” e estabeleceram um percurso sonoro puramente abstracto, mas absolutamente ancorado à pintura que evocam.
Rothko, o projecto musical, surgiu em Inglaterra na primavera de 97, com uma formação pautada pela invulgaridade: um trio de baixistas. Da sua formação inicial faziam parte Mark Beazly, Crawford Blair e Jon Mead, a que se juntavam esporadicamente outros instrumentistas convidados.


Após a gravação de três álbuns, Mark Beazley desfaz o colectivo em 2001, prosseguindo no entanto com o projecto sob a designação Rothko, tendo com ponto de partida para o reinicio da actividade em disco, as já citadas parecerias com Susumo Yokota. Depois dessas gravações, muitas outras se sucederam, em nome próprio ou em parcerias que envolveram cumplicidades várias como Caroline Ross ou Four Tet.

Vale pois a pena investigar, mas vale sobretudo a pena escutar…