Truman Capote
4.02.2012
Vão navios cheios de fantasmas*
Deixaram o que tinham e partiram.
Iam juntos, mas cada um ia mais na companhia de si próprio.
Que é afinal como se vai, sempre.
Na bagagem, quase nada, tirando um desejo imenso de tudo largar.
Partiram.
Sem instrumentos ou cábulas, sequer mapas.
Com a cabeça vazia de ideias feitas e cheia de desejos por cumprir.
Assim foram.
Em busca de lugar nenhum.
Dos que foram, dos que partiram, pouco sabemos.
Quantos chegaram, ignoramos.
Quantos se perderam ou voltaram, já esquecemos.
Apenas recordamos a vontade indómita de partir.
Apenas nos orgulhamos da memória da viagem, afinal o que importa reter.
Cada um dos que partiu levou na escassa bagagem a ideia de retorno.
Incapazes que foram de ir mais longe, de prosseguir rumando a parte incerta.
A vontade de recomeço estava muito presente.
Muito mais do que a consciência que cada um tinha de si.
Afinal o que importava preservar.
Por vezes e contrafeitos, recordamos aqueles que partiram, que se foram.
Por vezes evocamos aqueles que teimaram em ficar, onde a terra e o mar se confundem. Ausentes; sem noção de tempo ou lugar.
Por vezes, ingratos que somos, embrulhamos em brumas todos os que lá foram deixados.
Por vezes – quase sempre – fazemos de conta que nada se passou.
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* Este título, que também o foi de uma série de quimigramas,, foi surripiado a Louis-Ferdinand Céline, um grande escritor e um grandessíssimo filho da mãe.
2.11.2012
Às vezes chegavam cartas…
O que acontece é que as novas tecnologias, colocam à nossa disposição outras formas de comunicar, relegando para secundaríssimo plano o modo epistolar.
Escrever cartas caiu irremediavelmente em desuso… e assim é pelas mais diversas razões, prendendo-se quase todas (as razões) com questões de primeiríssima importância, como sejam a rapidez e a eficácia.
Sobre a rapidez e a eficácia, muito haveria a dizer, mas o que acontece realmente é que a arte epistolar está em extinção e o domínio da língua sofre com isso.
Exemplo flagrante é o efeito e a influência das abreviaturas das sms na linguagem oral e escrita quando esta é passada para outros suportes. Luís Sepúlveda com a destreza e sageza que se lhe reconhece, exemplifica com humor e desassombro tal uso e abuso no seu livro «A sombra do que fomos»: “Quero é com q e não com k, e também escreve-se com todas as letras.”
Existem múltiplos e riquíssimos exemplos de uma de escrita que abarcando vários domínios ficou para a História como parte do património literário. É o caso da Epístola de S. Paulo aos Coríntios ou as cartas de Rilke, a um jovem poeta que entre (muitas) outras correspondências, conquistaram a posteridade.
Num domínio, de registo mais documental, existem cartas que não só fizeram História como ajudaram a construí-la. Encontram-se neste âmbito as cartas de Pero Vaz de Caminha, dando conta ao rei D. Manuel do achamento do Brasil e das características das terras e gentes que por lá encontrou.
A História em geral e da literatura em particular foi consagrando alguns autores e as cartas que redigiram, como parte do património cultural a entronizar.
Hoje em dia, praticamente não nos chegam cartas que não tenham a ver com contas para pagar, intimações, multas e outras derivações. Recebem-se e-mails, telefonemas, mensagens… mas cartas não.
Como diria Gabriel Garcia Marquez, “Já ninguém escreve ao Coronel”.
Como não se escrevem, também não se recebem…
Se as cartas em geral estão a “desaparecer”, as de amor também o estarão certamente… Cartas daqueles que se escrevem, se rasgam, se reescrevem e nervosamente se introduzem num envelope (às vezes perfumado), se enviam pelo correio, ansiando pela resposta que nem sempre vem…
Houve um tempo em que as paixões coagiam os que as vivenciavam a trocarem cartas, nas quais o somatório das adjectivações devia servir para aquilatar a dimensão dos sentimentos.
São muitos os amores retumbantes que, os testemunhos epistolares pouparam ao esquecimento, como foi o caso das cartas trocadas entre Chopin e George Sand. Por estas latitudes, grandes escritores foram comprovados apaixonados. Camilo foi um deles, mas é a Fernando Pessoa pela voz de Álvaro de Campos que se deve a legitimação do ridículo, claramente assumido, no viver e descrever, escrevendo sobre tal condição.
Do lado dos poetas, impressionam pelo lirismo e autenticidade as cartas de amor de Pablo Neruda, impossíveis de ignorar.
Ainda no âmbito das cartas de amor, subsiste até hoje a dúvida sobre a autenticidade das cartas de Soror Mariana Alcoforado, freira de Beja. Verdadeiras ou ficcionadas – e não é toda a arte uma ficção? – as cartas e os sentimentos que veiculam, continuam até hoje a emocionar gerações de leitores predispostos a deixarem-se transportar pelas vagas emotivas que as ditas cartas condensam, tendo motivado grande controvérsia e gerado detractores, mas também palavras de apreço por parte de alguns grandes escritores Stendhal.
No universo artístico, se muitos foram os autores de que se conhecem cartas – magnificamente ilustradas e personalizadas como as de Van Gogh – dando conta das atribulações da vida e da obra que estavam a construir, artistas houve que em dado momento do seu percurso utilizaram a via epistolar para executarem as suas propostas artísticas.
On Kawara, mais conhecido pelas suas “data paintings” é um dos artistas que o fizeram de forma sistemática e continuada quer através de telegramas ou de bilhetes-postais, através dos quais e usando uma linguagem despojada, dava conta aos destinatários, da sua existência! Tanto quanto se sabe, continua a fazê-lo e continuará até ao fim dos seus dias. Tal atitude faz parte do seu projecto artístico.
Ainda no campo artístico, destacam-se as propostas de Eugénio Dittborn e as suas “Pinturas Aeropostales”, onde o principal postulado do projecto é o método adoptado pelo artista, o qual consiste no envio das obras pelo correio, para o local da exposição, expedido como se de correio “normal” se tratasse.
Chegadas ao local de exposição, as obras são desembaladas e expostas conjuntamente com os “envelopes” que as transportaram, sendo estes agregados ao método-processo artístico do autor, com todas as implicações, discussões e reflexões que possa suscitar.
É este o lado material das coisas. Das tais “coisas” que são do domínio dos afectos que se encontram materializados nos objectos criados. Num universo dominado por zeros e uns, faz bem perceber que ainda existe quem permaneça no lado humano da vida!
1.21.2012
fazia todo o sentido que te procurasse se era a ti que eu queria...
Digo:
de olhos fechados, era capaz de desenhar o mapa desse
corpo que as minhas mãos já não modelam,
a partir de percursos definidos a dois desejos que
afinal eram um só, em comunhão de urgências e aflições que
o sabermos do tempo efémero, convertia em desespero
Prossigo:
todos os sentidos são demais e não chegam e de olhos fechados sigo o
mapa que fiz de ti, relembrando cada curva, cada prega, cada sinal e
isso de nada me serve, agora que estás distante e
eu estou tão longe como se está, quando a distância está em nós
Retrocedo:
os sonhos que desbaratei, encontrei-os
espalhados pelo chão reflectidos
nas lágrimas que verti, sobre
telas que não pintei e papeis onde não escrevi as
cartas que te dediquei
Hesito:
também por isso fazia todo o sentido que te procurasse se era a ti que eu queria
apesar de nem sequer me encontrar, perdido que estou nestes lugares vazios onde
o turbilhão dos sentimentos que me habitam, fazem fronteira entre
aquilo que sou e o que queria ser
Recordo:
e numa tarde olhaste-me profundamente e disseste:
‒ “Tens um olhar tão triste”
Pensei: triste o olhar e eu com ele, por nos saber tão efémeros como
dizem que são as paixões cujo fim tentámos adiar, condenados que estávamos à
gloriosa e sofrida separação dos amantes, que a história sempre enaltece
Lamento:
o meu olhar permanece o mesmo ainda que
tu agora não dês conta, e os vestígios do que fomos se
encontrem dispersos pelos canteiros da memória que
é o único lugar aonde agora vamos
Reflicto:
o orgulho tem destas coisas que o preconceito acentua, fazendo
de mim uma ilha à deriva por entre frases inacabadas que o destino ignora; e
em tudo isso me revejo, confrontado com um tempo sem ti, que
se arrasta como pena a cumprir por entre as marcas que deixaste, nos
desenhos rasurados que não consigo terminar
1.01.2012
Inquietação
Não é arte pública nem arte de rua, muito embora se inscreva na paisagem urbana. Não tem autor nem existe intenção. Contudo, a sua constante transmutação e imparável propagação operam, sem destino certo ou discernível propósito uma persistente transformação do nosso panorama visual. Tudo isto sem destinatário e numa aleatoriedade evidente…
Marcam presença assídua, por vezes inesperada. Geralmente ostensivos, raramente discretos, vão povoando as paredes da cidade, revestindo muros e edifícios como uma segunda pele que camada a camada se vai regenerando e adaptando aos humores das estações do ano ou ao livre-arbítrio dos passantes… são textos fragmentados, ideias retalhadas que contribuem para o prazer da descoberta ou até da invenção, esta sim, pura especulação… porque afinal, especular é aquilo que se faz quando não se sabe, coisa que aceitamos como natural… congratulamo-nos até com isso e de descodificação em descodificação se tenta decifrar a mensagem e se conferir um significado à imagem fortuita que se gerou… a partir de manchas informes, por vezes vagos desenhos que vão compondo colagens, também “rasgagens”, onde se descortinam vagas narrativas, anúncios, propaganda.
Negações e afirmações cirandam em rodopio numa vertigem aqui e ali truncada por uma ou outra contingência…
Entre proibições, desistências, interdições e rejeições, ditou-se o fim adivinhado da tempestuosa obra, de todo impossível, portadora de uma intensidade imponderável, de uma materialidade intangível, de uma incerteza insuportável…
A paisagem ficou mais tranquila, mais ordenada, mais previsível e mais regulada. Mas também mais empobrecida. Nunca a certeza conferiu riqueza ao que quer que fosse… muito menos a obras de fachada.
Paulatinamente, foi retomada a placidez que ao lugar havia sido roubada.