"Faço-lhe notar que um ser humano que não sonha é como um corpo que não transpira: armazena uma porção de toxinas"
Truman Capote

9.28.2006

Mais algumas linhas...

A propósito da exposição “Artist Line – Linhas de Ruptura” a inaugurar em breve no novel espaço do colectivo cultural “Bacalhoeiro”, situado precisamente na Rua dos Bacalhoeiros em Lisboa, voltei a pensar em como a nossa vida, é toda ela atravessada por uma complicada teia de linhas...
A própria definição de linha é por si só uma complicação.

Numa das mais recentes edições do “Dicionário da Língua Portuguesa” da Porto Editora, encontrei: Linha é (entre muitas outras coisas) “um traço contínuo de espessura variável”, podendo ser também “figura geométrica gerada por um ponto que se desloca no espaço”; “traço real ou fictício que marca a separação entre duas zonas distintas”; etc., etc, etc. No final de todas as definições possíveis – e são muitas – encontra-se esta frase lapidar: “Cada um sabe as linhas com que se cose” que é como quem diz, cada um sabe da sua vida.

Confesso que não sei as linhas com me coso, mas isso não vem ao assunto e como tal, regresso à primeira definição: “Linha é um traço contínuo de espessura variável”.
Esta definição, concreta, precisa e concisa, levou-me a procurar no mesmo dicionário a definição de traço: “Segmento curto de uma linha, risco, impressão, sinal, vestígio”.

Tendo a nítida sensação de que comecei a ser arrastado pela maré, sem terra à vista, pus de parte todos os considerandos sobre os vários sentidos possíveis, os latos, os estritos, e todos os outros e fui procurar o significado de risco: “Linha, traço...” Afinal, os maiores receios foram infundados. Não andei assim tanto à deriva como inicialmente pensei. Parece-me mais que andei em círculos, com um regresso assegurado ao ponto de partida, ou seja, a linha.
Sobre linhas, algumas linhas, já escrevi anteriormente. Outras houve que não cheguei a referir como sejam as linhas de conduta, ou a Linha Azul que no Metropolitano de Lisboa liga a Baixa-Chiado à Amadora, ou a Linha Verde na Cisjordânia que delimita os territórios ocupados por Israel, ou a evocada Linha Vermelha quando se bate no fundo... ou ainda as linhas do futuro lidas na palma da mão (!?!), isto para só referir algumas que me surgiram assim de repente...

Mas, como as linhas podem ser traços, lembrei-me também do “jogo da corda” e do traço que era feito no chão, separando as duas equipas contendoras, puxando cada uma o mais que podia, tentando levar a outra a atravessar o dito traço.

Mas, como os traços também podem ser riscos, lembro-me do meu pai a admoestar-me: “Já estás a pisar o risco...” que é como quem diz, que existem linhas, traços, riscos, que não devem ser sequer pisados, quanto mais ultrapassados – tipo traço contínuo – já se vê...
São afinal limites que não devem ser ultrapassados, aos quais só é permitida, com mal disfarçada indulgência, a transgressão às crianças, aos insanos e... aos artistas!

(Ps: “LimiteLinha que estrema superfícies contíguas...” in Dicionário citado)

9.15.2006

Burros e Livros


É certo que gosto de uns e outros mas esta associação é no mínimo insólita, desde que não estejamos a falar de estórias infantis ou outras que não o sendo, sejam pelo menos suficientemente fantásticas para permitirem uma convivência pacífica entre uns e outros.

Tanto assim é que em alguns nichos sociais ainda persiste o salazarento anátema de que “um burro carregado de livros é um doutor”, o qual tanto evidencia um ancestral desprezo por uns como um ódio visceral por outros.

Falando por mim, devo dizer que gosto de burros e dentre estes, da agora tão mediática raça mirandesa que já existia – menos mediática é certo – antes de Toscano a ter “imortalizado” em tomadas de vista "originalíssimas"...

Gosto também de livros, daqueles objectos constituídos por páginas impressas e capas identitárias que antes se adquiriam em livrarias e agora pululam por todo o lado em que exista um hipermercado ou uma grande e despersonalizada cadeia do grande consumo a que se dá o pomposo nome de mega-store.

Tudo isto se passa num país onde provavelmente a maioria dos seus habitantes nunca viu na vida um burro ao vivo e onde se vendem livros que as pessoas não lêem e onde de vez em quando se arregimentam algumas boas – e notáveis – vontades para incrementar um plano nacional de leitura (em que parte das notáveis boas vontades integrantes nem sequer acredita!?!) com a estrita finalidade de levar o cidadão comum a ler.

Aqui chegado, pesem embora as opiniões contrárias, sou levado a pensar que, provavelmente a batalha está perdida e que a ideia romântica da “Livraria” já foi e a da leitura também... no entanto, algumas bolsas de resistência autorizam um optimismo moderado. Se não neste país, pelo menos noutras latitudes.

Vem esta retórica a propósito de um artigo do insuspeito “Washington Post” traduzido na “Pública” alguns meses atrás, o qual contava a saga dos designados Biblioburros.

Este fantástico empreendimento é fruto do empenho de Luís Soriano, que todos os fins-de-semana, acompanhado de dois burros carregados de livros, percorrem montes e vales do norte da Colômbia, a fim de permitir o acesso à leitura, de populações de aldeias recônditas, situadas em locais que, sómente pessoas a pé ou... de burro conseguem atingir.

Esta acção, para além de louvável é um empreendimento, no mínimo, notável.

Curiosamente, esta verdadeira biblioteca itinerante só tem duas regras a cumprir pelos seus utilizadores: Lavar as mãos antes de pegar nos livros e não escrever nas páginas!

Trata-se realmente de um serviço público – genuíno e gratuito – de alguém que tomou a seu cargo aquilo que instituições com muitos meios, recursos e não menos responsabilidades não fazem.

Mas não é só. Parte dos habitantes dessas aldeias, crianças e adultos, não sabem ler e é também luís Soriano quem procura preencher esse vazio ensinando-os!!!

Tarefa gigantesca esta, que continua, à revelia de optimismos e pessimismo – o meu incluído – indiferente aos índices e estatísticas acerca de níveis de leitura e índices de alfabetização, iliteracia e outros...

Como não ficar sensibilizado?